terça-feira, 14 de maio de 2019

Machiavel (1469-1527) e a ética politica


Nascido em Florença, Nicholas Machiavel é conhecido, sobretudo, pela sua obra controvertida O príncipe. Obra admirada por Napoleão e criticada por Descartes, Diderot e outros. Trata-se de um manual dedicado aos príncipes para fortalecer e manter seus poderes. 

Florença, cidade onde nasceu Machiavel, fora libertada do governo da poderosa família dos Médicis por Carlos VIII e vivia como República ao mesmo tempo democrática e teocrática, sob a inspiração do monge dominicano Savanarole (1452-1498).

Machiavel, nascido de uma família da pequena burguesia, eleito secretário da segunda chancelaria, responsável pelas relações com o interior e com países estrangeiros, com missões junto a soberanos italianos e estrangeiros, desenvolveu habilidades políticas. Encarregado de organizar a defesa da cidade, é vencido em 1512. 

Os espanhóis devastam a cidade e os Médicis retomam o poder. Machiavel é torturado e exilado. Redige sua obra, iniciando por O Príncipe, terminado em 1513 e só publicado em 1532. Escreveu também um importante comentário sobre a história romana, intitulado Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. De volta a Florença, em 1520, redige o Discurso sobre a língua, comédias e obras históricas.

Como todo pensador de sua época, Machiavel rompe com o poder da Igreja e, em consequência, com a tradição ética cristã trazida da Idade Média. Volta-se para os historiadores da Antiguidade e se impõe a tarefa de esclarecer, de maneira rigorosa, as práticas políticas de seu tempo. Da mesma maneira que se procuram leis que dessem conta do comportamento da natureza, Machiavel busca as regras que regulam os comportamentos sociais e políticos.

Machiavel estuda o passado para compreender qual o caminho para tomar o poder e mantê-lo. Mais precisamente, quer encontrar as leis eternas da dominação dos homens pelos homens. Pretende chegar ao conhecimento do sentido que funda a ação humana, especialmente a ação política, não baseada em uma visão mítica ou filosófica dos acontecimentos históricos, e nem buscando dar conta das coisas pela ação de Deus ou da providência divina.

 Sua meta é prever os acontecimentos por meio da observação das ações humanas no presente, particularmente das ações políticas. Quanto ao comportamento ético em política, ao observar os acontecimentos de sua época, caracterizada pela ausência de um poder central e, consequentemente, por lutas constantes, Machiavel conclui que a política não pode mais ser conduzida à luz de uma norma transcendente, tal como o Bem dos filósofos e teólogos. 

É necessário que a ação política seja prática, em um universo continuamente hostil. Trata-se de um mundo constituído de indivíduos não éticos, que julgam e decidem segundo seus desejos e necessidades imediatas. 

 Alguns autores observam que, diferentemente de Aristóteles, para quem a Ética e a política, embora não se confundam, são campos relacionados, para Machiavel, embora seja louvável exercer a política com integridade ética sempre que possível, é preciso partir do princípio de que os homens são maus e de que a ação política só pode ser julgada por sua eficácia. É a eficácia da ação política que permite aos homens uma coexistência ética.

O Estado é uma criação de alguns homens superiores e nenhuma ordem é possível senão pela coerção e pela força. Enfim, fundamentar a ação política por uma concepção filosófica do dever ético é, segundo Machiavel, correr o risco de perder o que deve ser conservado (o poder) e com ele toda a possibilidade de governar.

 A verdade em política é que, para se atingir um bem como a paz e a prosperidade, todo meio é legítimo. É o que o mundo real exige e o mundo, segundo Machiavel, é imutável. 

As experiências do passado são, assim, válidas para o presente e para o futuro. Ou seja, embora os acontecimentos históricos se movimentem com rapidez diferente, a história se repete e é sempre a mesma, à semelhança do universo, que é constante e sempre o mesmo, apesar do fato de os corpos nele se movimentarem em velocidades diferentes.

Em contrapartida, as coisas humanas, ao contrário do universo, apresentam uma causalidade totalmente imprevisível. É o que Machiavel denomina de Fortuna ou roda da fortuna. O termo "Fortuna" tem uma origem mítico-filosófica, consistindo na personificação do "acaso".

 A ideia expressa por ele vem da deusa romana da sorte, representando as coisas inevitáveis que acontecem aos seres humanos, tanto na vida cotidiana quanto na Política. Significa a impossibilidade de o homem dominar totalmente a história. Porém, como veremos no texto a seguir, Machiavel considera que o homem tem possibilidade de, até certo ponto, e de uma certa maneira, dominar o inevitável.

A necessidade leva a fins que a razão desconhece. Esse fato explica os acidentes da história e sua aparência caótica. Inimiga do homem de ação, a Fortuna pode vir a ser um seu auxiliar, com a condição de que ele saiba dominá-la por meio da política. 

E nisto consiste a "virtù", ou seja, na capacidade de adaptação aos acontecimentos políticos e de consequente permanência no poder. Segundo Machiavel, a tendência dos seres humanos é manter sempre a conduta que deu certo, atitude que levaria à perda do poder. Os grandes homens políticos, que criam novas situações por sua virtù, são os "virtuosi". 

Machiavel apresenta uma teoria cíclica da sucessão dos governos, inspirando-se no historiador grego Políbio (202-120 a.C.) e na República de Platão. Segundo essa teoria, existe um clo determinado que se apresenta de maneira regular, tornando possível a observação histórica. O ciclo é o seguinte:

1) O governo original é criado por vários homens de diferentes procedências, consistindo em um governo que é a monarquia.

2) Não tarda tal governo entrar, por sua vez, em decadência, degenerando-se em tirania.

3) Surge, então, um novo governo melhor, a aristocracia.

4) Este não demora a degenerar-se em um governo oligárquico.

5) A este sucede um governo democrático que também não tarda a cair na desordem, anarquia.

6) Nessa situação, só um príncipe ou um monarca pode salvar o povo. E o ciclo recomeça.

A importância de Machiavel está, sem dúvida, nesse suscitar da reflexão sobre a Ética e sobre as dificuldades inerentes à tomada de decisões, particularmente em campos especialmente móveis, como a política ou, hoje, a tecnologia.

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, em sua obra intitulada Signos, faz uma descrição fenomenológico-existencial que visa compreender a obra de Machiavel dentro de seu contexto existencial. 

Isso significa que Merleau-Ponty vê, na obra de Machiavel, um entendimento da política como algo eminentemente humano, buscando a verdade dos acontecimentos, descrevendo- os segundo se apresentam no mundo real, em sua instância de relação com o outro, que seria um "signo" de valor na política, parte da experiência de seu próprio tempo.

Assim, por exemplo, quando Machiavel escreve que o príncipe deve ter as qualidades que ele aparenta, estaria enunciando uma condição fundamental da política como ela era em seu tempo e continua a ser até os dias de hoje, que é "se desenrolar na aparência"; quando Machiavel diz que o príncipe tem que ter domínio de si para poder desenvolver posições contrárias no caso de ser necessário, isso significaria que, no campo da política, nãohá lugar para os valores de uma moral abstrata.

 Enfim, a  verdade na política é aquela de quem tem o poder e que não vê a própria imagem passada aos outros.

Merleau-Ponty vê, na obra O Príncipe, de Machiavel, a descrição da política como ela tem sido e é através dos tempos e, como vimos, em tal política não há lugar para a Ética. A questão que colocaríamos seria a seguinte: É mesmo possível falar de uma Ética em Machiavel?

Responderíamos que a busca de Machiavel pela compreensão dos comportamentos sociais e políticos não tem como objetivo propriamente o caráter destes enquanto se mostram em si mesmos, mas, sim, enquanto se mostram à luz de uma meta geral: a obtenção e a manutenção do poder político.

Uma visão ética é sempre uma visão concreta, o que significa uma visão completa tanto da "morada interior", ou seja, tanto dos fenômenos em si mesmos, quanto da "morada exterior", ou dos fatos em si. 

A visão de Machiavel permanece na "morada exterior", ou seja, nos fatos. E a pergunta final é: O poder deve decorrer do governar, do caráter próprio deste, do que lhe é único e singular? Ou, ao contrário, o governar deve decorrer do poder?

Duas são as consequências principais da visão da política em Machiavel, no que concerne à Ética, a nosso ver:

1) O ético ou a Ética estará necessariamente ausente em suas considerações sobre a política, uma vez que tais considerações não contemplam a ação política em seu sentido mais próprio, buscando esse sentido fora dela.

2) Não há regras propriamente de moralidade em sua concepção política, pois, sem fundamento ético, não há moralidade. As regras de comportamento por ele apresentadas são meros instrumentos de ação em busca do poder e de sua manutenção. Para não citar senão algumas:

A opressão: para permanecer no poder, é permitido, segundo Machiavel, usar de meios coercitivos, como oprimir, cultivando o medo. Pode-se, ainda, recorrer a medidas primitivas mais sumárias com relação aos que subvertem a política adotada, como as execuções.

A destruição: em alguns casos, de acordo com Machiavel, é aconselhável destruir cidades inteiras, quando o controle destas torna-se difícil, tendo em vista a existência de grupos de cidadãos, dotados de consciência política, buscando subverter a política implantada.

A mentira: diz Machiavel, no capítulo XVIII da obra O Príncipe, que um príncipe prudente não pode e nem deve guardar a palavra dada, se isso vier a prejudicá-lo ou quando as causas que determinaram a palavra dada cessarem de existir. Enfim, ser um bom simulador e dissimulador é uma das qualidades do bom governante.

E, assim, muitos outros exemplos do pensamento em política de Machiavel se encontram em sua obra principal, O Príncipe, cuja leitura aconselhamos. Ao fazê-la, você perceberá o quanto suas ideias são atuais e em plena vigência em nossa época.

No que diz respeito a convicções pessoais, estas configuram uma moralidade pessoal e não propriamente uma Ética, uma vez que se fundamentam em valores e normas culturais.

Quanto a uma Ética da responsabilidade, ela concerne a consequências e não a resultados. Em uma área como a política, particularmente assolada por circunstâncias, a postura ética
é essencial (Aristóteles, recordemos, considerava a Ética como propedêutica à política), pois toda circunstância, por sua própria natureza, não comporta regras ou princípios gerais. Ela é fundamentalmente singular. 

Atender às circunstâncias é buscar compreendê-las, o que significa "dar a justa medida", captando seus sentidos (direções) e possibilidades. É trabalho para uma equipe de profissionais, pois implica a atuação de vários campos do saber. Não há "savoir-faire", nem mesmo o político, como parece pretender Machiavel, que substitua o saber das razões que fundamentam uma situação circunstancial.


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