segunda-feira, 20 de maio de 2019

Immanuel Kant e a Ética do Dever

O filósofo Kant (1724-1804) é, sem dúvida, um dos pensadores mais importantes do século XVIII; talvez o mais importante. Em qualquer cenário, é um dos autores protagonistas nos curso de filosofia, visitado em diferentes disciplinas. No campo da ética, articula de forma interessante a teoria em torno da questão do dever. Para esse filósofo, nascido em Königsberg (antigo território prussiano), toda ação que se pretenda pautada pela ética, toda ação que seja legitimamente moral, é uma ação segundo o dever. 

Para começar a entender a ideia kantiana de dever, podemos começar pelo que ele não é, nesse caso, ação por interesse. Aqui não se trata de ideia de interesse no sentido “de estar voltado para algo”, mas a discussão é sobre a motivação da ação. 

Como nos lembram diferentes autores, tomar determinada linha de ação para obter algum benefício (atender ao nosso interesse) pode ser visto como uma doutrina egoísta, ou melhor, uma linha de pensamento em que o critério para as minhas ações é o que essa ação pode resultar de bom para mim. 

Por exemplo, se auxilio um conhecido considerando que ele ficará “me devendo um favor”, estou guiando minha ação como uma espécie de investimento futuro; na verdade um “empréstimo de solidariedade” (não estamos nos referindo propriamente a dinheiro), o qual eu posso “resgatar” quando me for conveniente. Em alguns casos, o egoísta espera receber o “empréstimo da boa ação” acrescido de “juros”.

Para o pensamento kantiano, esse tipo de conduta não tem nada de ético, pois, afinal, o que deveria ser o motivo da ação é uma causa, a priori, puramente racional, nada que seja derivado dos desejos, cobiça, lucro, fama ou quaisquer outras motivações externas à razão.

O pensamento kantiano admite que somos pressionados pelas necessidades naturais (Idem, 2003). O corpo humano tem necessidades que são físicas, biológicas e químicas, das quais não podemos escapar. Basta lembrar que todo ser humano precisa dormir! Não é uma necessidade que possa simplesmente ser posta de lado (sim, estudante, há casos de pessoas que sofrem de insônia, mas isso indica apenas que ela tem dificuldades para dormir, não é o mesmo que nunca dormir, até porque em casos assim o indivíduo adoece).

 O mesmo se estende ao ato de comer ou beber. No entanto, algumas necessidades são parcialmente suprimidas (optar por fazer uma refeição mais cedo ou mais tarde) e outros impulsos podem ser ou não contidos, dependendo da escolha do agente (em um momento de desagrado, dirigir ou não palavras ofensivas para a outra pessoa).

Não se trata apenas das necessidades internas; também recebemos toda uma série de estímulos externos, sociais, que podem induzir nossa vontade. Imagine, estudante, agir de uma maneira que faça com que as outras pessoas gostem de você.

 No entanto, você faria as mesmas coisas se soubesse de antemão que elas não lhe proporcionariam nenhuma popularidade? É essa a direção seguida por Kant no exame da moral. Para o filósofo de Königsberg, nossa vontade – que guia nossas ações - deve se identificar com aquilo que ele próprio definiu como boa vontade.


Diálogo com o Autor

“A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em sim mesma, deve ser avaliada em um grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações.” (KANT, 2007, p. 23.)

Eis um ponto que merece bastante atenção: uma boa vontade só é boa pela sua forma de querer, um querer em si mesma. O que o filósofo estava tentando nos passar? Que esse “querer” deve seguir a si próprio e não influências, motivos, desejos ou outros estímulos externos.

 De onde vem um “querer em si mesmo”? Para Kant, o ser humano é dotado de vontade, mas atenção! Aqui é uma concepção da vontade que não corresponde à do senso comum, que muitas vezes equivale vontade com desejo, por exemplo: “o menino está com vontade (quer) de mais sorvete de chocolate” ou “a menina tem vontade (gostaria ou deseja) de uma boneca nova”. 

Segundo Kant, a “vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto seres racionais” (KANT, 2007, p. 93). Em outras palavras, uma motivação derivada da razão, cuja liberdade seria uma propriedade da mesma (Idem).

Assim sendo, a fonte de uma boa vontade estaria em nossa vontade racional, que segundo Kant é universal. Essa universalidade diz respeito a todos os seres racionais. Agir por boa vontade também é agir segundo o dever (lei moral) formado pela nossa razão. Um ponto fundamental da ética kantiana é que ela não impõe conteúdos, não cria uma lista de coisas que são boas segundo a razão ou uma lista de coisas que não são. 

A estratégia de Kant está em permanecer na forma da razão, ou melhor, a racionalidade produz por coerência consigo mesma certo parâmetro, que por ser produzido racionalmente, é compatível com qualquer ser racional e, portanto, independente de cultura, época ou lugar - daí a universalidade do princípio. Mas, afinal, qual o parâmetro? Qual a regra? Considerando-se que seria uma regra sem conteúdo!

Quando Aristóteles buscou o seu critério para uma ação boa, seguiu com a ideia de um “meio termo” entre os extremos; a virtude (ação boa) está longe do vício por excesso e longe do vício por ausência. A solução kantiana pode ser considerada até mais simples. O critério é a própria universalidade, via razão.

Para uma ação ser moralmente válida, ela deve ser racional. E se ela (ação que se pretende moralmente válida) for realmente uma ação racional, será coerente com a atitude de qualquer ser racional; portanto será válida moralmente para todos os seres racionais. Mas esse, estudante, é o aspecto sutil da questão; a ação teria que ser possível de ser executada por todos não quando convém a cada um, mas por todos o tempo todo! Esse é o critério! Confuso? Imagine a mentira. 

Podemos imaginá-la como uma ação que seja universal? Não se trata de tolerar este ou aquele mentiroso, que quando lhe convém mente para seu próximo (seja para obter lucro, seja para se sobressair socialmente etc.). A pergunta seria: poderíamos viver em uma sociedade em que todos mintam? O médico mente ao paciente,
que mente ao advogado, que mente ao juiz, que mente ao réu, que mente à família, e assim infinitamente. A própria comunicação mínima necessária para o convívio e organização da sociedade se tornaria inviável.

Mas antes do passo seguinte, ainda um ponto que deve incomodar o estudante atento: como uma regra pode não ter conteúdo? Como ela pode ter apenas forma? Ajuda se raciocinarmos forma enquanto fórmula, e nesse caso chegamos ao célebre imperativo categórico.

Diálogo com o Autor

“O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.” (KANT, 2007, p. 59.)

Partindo, então, da fórmula kantiana, o que temos é uma espécie de “teste de universalidade”, em que não está previamente estabelecido que esta ação em particular é boa ou ruim, mas devemos refletir sobre sua coerência racional, seguindo a ideia da universalidade. 

Se posso fazer com os outros e os outros também podem fazer comigo e entre eles, independentemente de circunstâncias que beneficiassem essa ou aquela pessoa, então essa é uma ação de acordo com a vontade racional, ou seja, atende a um imperativo da razão – portanto, um imperativo categórico, porque busca uma coerência universal e assume a forma de um dever. (Lembre que, como acabamos de mencionar, a mentira não atende a esse critério, porque não poderia ser elevada a um padrão de conduta corriqueiro, não poderia ser aceita como lei universal da razão).

A ideia de uma lei universal aplicada como sugere Kant, tem derivações interessantes apontadas pelo próprio filósofo, quando atentamos para a maneira como devemos tratar com os outros. Em palavras kantianas: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” (KANT, 2007, p. 69).

Ora,como a ideia é fazer ações que se tornem leis universais, sem dúvida utilizar as pessoas como meios para atingir outros fins não pode ser considerado um princípio eticamente válido. Você já deve ter ouvido a expressão “Aquela pessoa tem segundas intenções”. Esse é o caso que estamos examinando.

 Considerar “as outras pessoas como meios” significa tratálas como “pontes” para alcançar outros interesses, seja como o bajulador que elogia ou se mostra simpático a alguém em posição de poder (para obter vantagem futura), seja, como foi mencionado antes, como aquele que, em falsa solidariedade, auxilia o próximo com vistas a obter também alguma vantagem no futuro. 

Tanto em um caso como no outro não há um verdadeiro respeito pela dignidade da humanidade do outro indivíduo e, portanto, não poderiam ser elevados à condição de lei universal.

Por fim, chamamos atenção novamente para o tema da liberdade. Kant defende que para chegarmos ao imperativo categórico, a autonomia da vontade está pressuposta. O indivíduo apenas pode agir moralmente se sua vontade visar apenas à boa vontade. Se essa ação decorre de influências ou pressões externas, então ela não se portou autonomamente. 

Isso levanta uma questão interessante no pensamento kantiano, que o faz distinguir a ação segundo a lei moral e a ação segundo a lei do Estado (no sentido jurídico). Por se tratar de um princípio que depende rigorosamente da racionalidade, quando o indivíduo age conforme a lei, ele está sendo moralmente correto? Para o filósofo de Königsberg, não necessariamente!

Um indivíduo pode agir de acordo com as leis de seu país e estar sendo moralmente correto, pois as leis do Estado convergem para os ditames da vontade racional do mesmo indivíduo, ou seja, ele na verdade está obedecendo a suas convicções racionais em primeiro lugar (autonomia). 

Já em outro caso, o sujeito obedece às leis do Estado sem se preocupar se está ou não atendendo a um parâmetro universal da razão; a preocupação com a conformidade legal acontece por receio das sanções que receberia caso não atue de acordo. 

Nessa situação, embora o cidadão não tenha cometido nenhuma ilegalidade (respeitou as leis de trânsito, pagou seus impostos, etc.), segundo o critério kantiano ele não foi ainda verdadeiramente ético, uma vez que só agiu corretamente por pressão da punição que poderia receber (ser multado ou preso, dependendo da violação). Nesse caso, diria Kant, prevaleceu o imperativo hipotético, em que o sujeito age de determinada maneira
pensando em conseguir (ou evitar) determinada consequência.

Esse último ponto nos leva a uma reflexão. A proposta kantiana é um desafio pelo seu rigor racional, ao ponto de não autorizar que a simples conformidade legal (em relação às leis do Estado) assegure se tratar de um ato de moralidade, e de exigir, para tanto, a conformidade com a lei moral em nós (que é agir segundo a vontade racional). 

Podemos imaginar que uma sociedade que de fato alcançasse o nível de exigência da ética kantiana seria muito menos problemática do que uma sociedade em que seus cidadãos somente cumprem suas leis mediante intensa fiscalização e vigilância do poder público. 

A ausência de uma solidariedade social verdadeira, a existência apenas de uma colaboração forçada, não levaria a um cenário por demais opressivo? As leis sociais só seriam obedecidas pela deformação da vontade mediante pressão do Estado. Nesse clima opressivo, a manutenção da ordem e os próprios vínculos sociais ficariam à mercê do uso de força. 

Mas o que aconteceria quando todo esse aparato de vigilância falhasse? Em um exemplo mais simples: e se o guarda de trânsito não estiver presente (e não houver câmeras filmando), a sinalização de trânsito seria obedecida?

Se uma sociedade assumisse mais coletivamente (é provável que houvesse exceções e com elas crimes) os parâmetros da vontade racional, por acaso não tenderia que seus cidadãos cumprissem suas leis, por exemplo, de maneira mais espontânea? Com menor incidência de vigilância, não sobrariam mais recursos para aplicar em outros serviços públicos mais interessantes? Não seriam menores os casos de corrupção? Certamente é algo que merece reflexão.


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