segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Pragmatismo

Movimento filosófico que inclui aqueles que afirmam que uma ideologia ou proposição é verdadeira se funcionar satisfatoriamente, que o significado de uma proposição deve ser encontrado nas consequências práticas de aceitá-la, e que ideias não práticas devem ser rejeitadas.

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Bioética

Bioética: estudo sistemático da conduta humana, na área das ciências da vida e dos cuidados de saúde, quando essa conduta é examinada à luz dos valores e dos princípios morais.  

Filosofia da investigação e da prática biomédica . Setor da ética que estuda os problemas inerentes à tutela da vida física e, em particular, as implicações éticas das ciências biomédicas .

 A ética aplicada aos novos problemas que se desenvolvem nas fronteiras da vida.

terça-feira, 6 de agosto de 2019

Vamos compreender o que é moral?

O conceito de moral vem do latim “mos”, “moris” e significa “costume”, “tradição”, “caráter”. Da palavra “mores” derivou “moralis”, utilizado por Cícero para traduzir a palavra grega “ethika”. Quer dizer, do ponto de vista etimológico, Ética e Moral têm um conteúdo semântico idêntico. A moral pode ser entendida, então, como um conjunto de regras de conduta consideradas válidas para instituições, grupos e pessoas.

Ontologia e Axiologia

Ontologia: é uma parte da Filosofia que se ocupa do ser humano. Surgiu entre os filósofos pré-socráticos no século 6 a.C., época em que faziam uma distinção entre essência e existência. Para muitos autores, é sinônimo de metafísica.

Axiologia: é a parte da Filosofia que estuda os valores, é a ciência dos valores; vocábulo criado por Karl Böhm em 1890. A axiologia é a teoria dos valores filosóficos, morais e metafísicos.

Bioética

Bioética: estudo sistemático da conduta humana, na área das ciências da vida e dos cuidados de saúde, quando essa conduta é examinada à luz dos valores e dos princípios morais.

Filosofia da investigação e da prática biomédica (Sgreccia). Setor da ética que estuda os problemas inerentes à tutela da vida física e, em particular, as implicações éticas das ciências biomédicas . 

A ética aplicada aos novos problemas que se desenvolvem nas fronteiras da vida.

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Virtudes Cardinais


Virtude: disposição para realizar atos moralmente corretos. Tendência para agir corretamente. Também considerada qualidade que torna a pessoa sábia.

Virtudes Cardinais: compreendem a prudência, justiça, temperança e coragem. Tomás de Aquino herda as quatro virtudes gregas e acrescenta as três virtudes teológicas: fé, esperança e amor.

segunda-feira, 20 de maio de 2019

Immanuel Kant e a Ética do Dever

O filósofo Kant (1724-1804) é, sem dúvida, um dos pensadores mais importantes do século XVIII; talvez o mais importante. Em qualquer cenário, é um dos autores protagonistas nos curso de filosofia, visitado em diferentes disciplinas. No campo da ética, articula de forma interessante a teoria em torno da questão do dever. Para esse filósofo, nascido em Königsberg (antigo território prussiano), toda ação que se pretenda pautada pela ética, toda ação que seja legitimamente moral, é uma ação segundo o dever. 

Para começar a entender a ideia kantiana de dever, podemos começar pelo que ele não é, nesse caso, ação por interesse. Aqui não se trata de ideia de interesse no sentido “de estar voltado para algo”, mas a discussão é sobre a motivação da ação. 

Como nos lembram diferentes autores, tomar determinada linha de ação para obter algum benefício (atender ao nosso interesse) pode ser visto como uma doutrina egoísta, ou melhor, uma linha de pensamento em que o critério para as minhas ações é o que essa ação pode resultar de bom para mim. 

Por exemplo, se auxilio um conhecido considerando que ele ficará “me devendo um favor”, estou guiando minha ação como uma espécie de investimento futuro; na verdade um “empréstimo de solidariedade” (não estamos nos referindo propriamente a dinheiro), o qual eu posso “resgatar” quando me for conveniente. Em alguns casos, o egoísta espera receber o “empréstimo da boa ação” acrescido de “juros”.

Para o pensamento kantiano, esse tipo de conduta não tem nada de ético, pois, afinal, o que deveria ser o motivo da ação é uma causa, a priori, puramente racional, nada que seja derivado dos desejos, cobiça, lucro, fama ou quaisquer outras motivações externas à razão.

O pensamento kantiano admite que somos pressionados pelas necessidades naturais (Idem, 2003). O corpo humano tem necessidades que são físicas, biológicas e químicas, das quais não podemos escapar. Basta lembrar que todo ser humano precisa dormir! Não é uma necessidade que possa simplesmente ser posta de lado (sim, estudante, há casos de pessoas que sofrem de insônia, mas isso indica apenas que ela tem dificuldades para dormir, não é o mesmo que nunca dormir, até porque em casos assim o indivíduo adoece).

 O mesmo se estende ao ato de comer ou beber. No entanto, algumas necessidades são parcialmente suprimidas (optar por fazer uma refeição mais cedo ou mais tarde) e outros impulsos podem ser ou não contidos, dependendo da escolha do agente (em um momento de desagrado, dirigir ou não palavras ofensivas para a outra pessoa).

Não se trata apenas das necessidades internas; também recebemos toda uma série de estímulos externos, sociais, que podem induzir nossa vontade. Imagine, estudante, agir de uma maneira que faça com que as outras pessoas gostem de você.

 No entanto, você faria as mesmas coisas se soubesse de antemão que elas não lhe proporcionariam nenhuma popularidade? É essa a direção seguida por Kant no exame da moral. Para o filósofo de Königsberg, nossa vontade – que guia nossas ações - deve se identificar com aquilo que ele próprio definiu como boa vontade.


Diálogo com o Autor

“A boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão somente pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em sim mesma, deve ser avaliada em um grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser, da soma de todas as inclinações.” (KANT, 2007, p. 23.)

Eis um ponto que merece bastante atenção: uma boa vontade só é boa pela sua forma de querer, um querer em si mesma. O que o filósofo estava tentando nos passar? Que esse “querer” deve seguir a si próprio e não influências, motivos, desejos ou outros estímulos externos.

 De onde vem um “querer em si mesmo”? Para Kant, o ser humano é dotado de vontade, mas atenção! Aqui é uma concepção da vontade que não corresponde à do senso comum, que muitas vezes equivale vontade com desejo, por exemplo: “o menino está com vontade (quer) de mais sorvete de chocolate” ou “a menina tem vontade (gostaria ou deseja) de uma boneca nova”. 

Segundo Kant, a “vontade é uma espécie de causalidade dos seres vivos, enquanto seres racionais” (KANT, 2007, p. 93). Em outras palavras, uma motivação derivada da razão, cuja liberdade seria uma propriedade da mesma (Idem).

Assim sendo, a fonte de uma boa vontade estaria em nossa vontade racional, que segundo Kant é universal. Essa universalidade diz respeito a todos os seres racionais. Agir por boa vontade também é agir segundo o dever (lei moral) formado pela nossa razão. Um ponto fundamental da ética kantiana é que ela não impõe conteúdos, não cria uma lista de coisas que são boas segundo a razão ou uma lista de coisas que não são. 

A estratégia de Kant está em permanecer na forma da razão, ou melhor, a racionalidade produz por coerência consigo mesma certo parâmetro, que por ser produzido racionalmente, é compatível com qualquer ser racional e, portanto, independente de cultura, época ou lugar - daí a universalidade do princípio. Mas, afinal, qual o parâmetro? Qual a regra? Considerando-se que seria uma regra sem conteúdo!

Quando Aristóteles buscou o seu critério para uma ação boa, seguiu com a ideia de um “meio termo” entre os extremos; a virtude (ação boa) está longe do vício por excesso e longe do vício por ausência. A solução kantiana pode ser considerada até mais simples. O critério é a própria universalidade, via razão.

Para uma ação ser moralmente válida, ela deve ser racional. E se ela (ação que se pretende moralmente válida) for realmente uma ação racional, será coerente com a atitude de qualquer ser racional; portanto será válida moralmente para todos os seres racionais. Mas esse, estudante, é o aspecto sutil da questão; a ação teria que ser possível de ser executada por todos não quando convém a cada um, mas por todos o tempo todo! Esse é o critério! Confuso? Imagine a mentira. 

Podemos imaginá-la como uma ação que seja universal? Não se trata de tolerar este ou aquele mentiroso, que quando lhe convém mente para seu próximo (seja para obter lucro, seja para se sobressair socialmente etc.). A pergunta seria: poderíamos viver em uma sociedade em que todos mintam? O médico mente ao paciente,
que mente ao advogado, que mente ao juiz, que mente ao réu, que mente à família, e assim infinitamente. A própria comunicação mínima necessária para o convívio e organização da sociedade se tornaria inviável.

Mas antes do passo seguinte, ainda um ponto que deve incomodar o estudante atento: como uma regra pode não ter conteúdo? Como ela pode ter apenas forma? Ajuda se raciocinarmos forma enquanto fórmula, e nesse caso chegamos ao célebre imperativo categórico.

Diálogo com o Autor

“O imperativo categórico é portanto só um único, que é este: age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.” (KANT, 2007, p. 59.)

Partindo, então, da fórmula kantiana, o que temos é uma espécie de “teste de universalidade”, em que não está previamente estabelecido que esta ação em particular é boa ou ruim, mas devemos refletir sobre sua coerência racional, seguindo a ideia da universalidade. 

Se posso fazer com os outros e os outros também podem fazer comigo e entre eles, independentemente de circunstâncias que beneficiassem essa ou aquela pessoa, então essa é uma ação de acordo com a vontade racional, ou seja, atende a um imperativo da razão – portanto, um imperativo categórico, porque busca uma coerência universal e assume a forma de um dever. (Lembre que, como acabamos de mencionar, a mentira não atende a esse critério, porque não poderia ser elevada a um padrão de conduta corriqueiro, não poderia ser aceita como lei universal da razão).

A ideia de uma lei universal aplicada como sugere Kant, tem derivações interessantes apontadas pelo próprio filósofo, quando atentamos para a maneira como devemos tratar com os outros. Em palavras kantianas: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio.” (KANT, 2007, p. 69).

Ora,como a ideia é fazer ações que se tornem leis universais, sem dúvida utilizar as pessoas como meios para atingir outros fins não pode ser considerado um princípio eticamente válido. Você já deve ter ouvido a expressão “Aquela pessoa tem segundas intenções”. Esse é o caso que estamos examinando.

 Considerar “as outras pessoas como meios” significa tratálas como “pontes” para alcançar outros interesses, seja como o bajulador que elogia ou se mostra simpático a alguém em posição de poder (para obter vantagem futura), seja, como foi mencionado antes, como aquele que, em falsa solidariedade, auxilia o próximo com vistas a obter também alguma vantagem no futuro. 

Tanto em um caso como no outro não há um verdadeiro respeito pela dignidade da humanidade do outro indivíduo e, portanto, não poderiam ser elevados à condição de lei universal.

Por fim, chamamos atenção novamente para o tema da liberdade. Kant defende que para chegarmos ao imperativo categórico, a autonomia da vontade está pressuposta. O indivíduo apenas pode agir moralmente se sua vontade visar apenas à boa vontade. Se essa ação decorre de influências ou pressões externas, então ela não se portou autonomamente. 

Isso levanta uma questão interessante no pensamento kantiano, que o faz distinguir a ação segundo a lei moral e a ação segundo a lei do Estado (no sentido jurídico). Por se tratar de um princípio que depende rigorosamente da racionalidade, quando o indivíduo age conforme a lei, ele está sendo moralmente correto? Para o filósofo de Königsberg, não necessariamente!

Um indivíduo pode agir de acordo com as leis de seu país e estar sendo moralmente correto, pois as leis do Estado convergem para os ditames da vontade racional do mesmo indivíduo, ou seja, ele na verdade está obedecendo a suas convicções racionais em primeiro lugar (autonomia). 

Já em outro caso, o sujeito obedece às leis do Estado sem se preocupar se está ou não atendendo a um parâmetro universal da razão; a preocupação com a conformidade legal acontece por receio das sanções que receberia caso não atue de acordo. 

Nessa situação, embora o cidadão não tenha cometido nenhuma ilegalidade (respeitou as leis de trânsito, pagou seus impostos, etc.), segundo o critério kantiano ele não foi ainda verdadeiramente ético, uma vez que só agiu corretamente por pressão da punição que poderia receber (ser multado ou preso, dependendo da violação). Nesse caso, diria Kant, prevaleceu o imperativo hipotético, em que o sujeito age de determinada maneira
pensando em conseguir (ou evitar) determinada consequência.

Esse último ponto nos leva a uma reflexão. A proposta kantiana é um desafio pelo seu rigor racional, ao ponto de não autorizar que a simples conformidade legal (em relação às leis do Estado) assegure se tratar de um ato de moralidade, e de exigir, para tanto, a conformidade com a lei moral em nós (que é agir segundo a vontade racional). 

Podemos imaginar que uma sociedade que de fato alcançasse o nível de exigência da ética kantiana seria muito menos problemática do que uma sociedade em que seus cidadãos somente cumprem suas leis mediante intensa fiscalização e vigilância do poder público. 

A ausência de uma solidariedade social verdadeira, a existência apenas de uma colaboração forçada, não levaria a um cenário por demais opressivo? As leis sociais só seriam obedecidas pela deformação da vontade mediante pressão do Estado. Nesse clima opressivo, a manutenção da ordem e os próprios vínculos sociais ficariam à mercê do uso de força. 

Mas o que aconteceria quando todo esse aparato de vigilância falhasse? Em um exemplo mais simples: e se o guarda de trânsito não estiver presente (e não houver câmeras filmando), a sinalização de trânsito seria obedecida?

Se uma sociedade assumisse mais coletivamente (é provável que houvesse exceções e com elas crimes) os parâmetros da vontade racional, por acaso não tenderia que seus cidadãos cumprissem suas leis, por exemplo, de maneira mais espontânea? Com menor incidência de vigilância, não sobrariam mais recursos para aplicar em outros serviços públicos mais interessantes? Não seriam menores os casos de corrupção? Certamente é algo que merece reflexão.


quinta-feira, 16 de maio de 2019

Aristóteles e a Ética da Virtude ( L)

Por volta do ano de 384 a.C., nascia em Estagira o filho de um médico da corte do rei da Macedônia. Mais tarde, o apreço pelo entendimento da natureza levaria o então jovem estagirita a buscar uma sabedoria que ia além dos conhecimentos médicos paternos. Essa busca levaria o jovem, que atendia pelo nome de Aristóteles, a terras atenienses. Lá, tem contato com um dos gigantes da filosofia grega, Platão, que se tornaria seu mestre. Estava começando o caminho que levaria Aristóteles a gravar seu nome na história do pensamento ocidental.

A obra de Aristóteles aborda diferentes campos do pensamento filosófico, tais como a Lógica, a Política, a Metafísica, entre outros. Para o que propomos nesse tópico, daremos ênfase à Ética. A obra aristotélica sobre a qual nos debruçaremos é a Ética a Nicômaco.

Nessa obra, podemos encontrar alguns componentes do pensamento ético do estagirita que ainda estão presentes nas discussões contemporâneas sobre o tema. 


Questões filosóficas, como: “qual o sentido da vida?”, “existe uma melhor maneira de se viver?”, “qual a forma de agir corretamente?” são algumas das diversas questões filosóficas que remontam à antiga sabedoria grega. Como era de se esperar de um pensador do período, Aristóteles também se debruçou sobre essas questões.

Ponderando sobre a maneira como viviam seus contemporâneos, Aristóteles identificou três grupos principais:

a) aqueles que vivem apenas para o prazer;
b) aqueles que vivem para a política;
c) aqueles que levam uma vida contemplativa.


Os que vivem apenas em busca do prazer o mestre estagirita identifica como aqueles que levam uma forma de vida vulgar, “uma vida bestial”. Já o grupo que se dedica à política pode acabar sendo vítima de uma busca superficial: a da honra. 


Apesar de ser a honra “a finalidade da vida política”, ela sempre dependerá “mais de quem a confere que de quem a recebe, enquanto o bem nos parece ser algo próprio de um homem e que dificilmente lhe poderia ser arrebatado”

Mas, é o último grupo, por se dedicar à contemplação, à sabedoria e ao entendimento, que pode alcançar uma felicidade duradoura, algo que vá além dos prazeres efêmeros e da inconstância da honra. Sim, você, está entendendo corretamente. Para o pensamento aristotélico, a busca pela felicidade é parte fundamental da reflexão sobre Ética.

O entendimento da ideia de felicidade em Aristóteles passa também pelo entendimento da ideia de virtude. Mas, como acontece com diversos autores da filosofia, seus conceitos estão articulados de modo que estes se interpenetram. 

Apesar de tentar nos focarmos apenas na ética, para não perder de vista os objetivos da unidade, precisaremos que você nos acompanhe numa pequena digressão metafísica. Não perca a paciência, pois o resultado é compensador! O sábio de Estagira, em suas reflexões, fez uma distinção, para explicar o movimento presente na natureza (aqui no sentido mais amplo, que inclui também o transformar), entre potência e ato. 

A potência descreveria o vir a ser, a possibilidade, tudo aquilo que ainda não é, porém pode ser, pode se tornar. O exemplo mais simples disso: pegue uma semente de maçã na palma da sua mão. Essa pequenina semente carrega consigo a potência para se tornar uma grande árvore repleta de frutas com outras sementes como aquela.

 De certa maneira, a macieira está na sua mão, mas está em potência, como uma possibilidade a ser realizada. Ainda não está em ato. O ato é a potência realizada. No caso da semente, a árvore corresponde à atualização, a realização da potência que já existia na semente.

Assim, a relação potência/ato serve para descrever quando algo atinge sua finalidade. A realização da finalidade encontra-se na realização do potencial. 

Ao abordar a ideia de virtude, o pensador estagirita recorre a um raciocínio análogo. Trata-se de entender a função que uma coisa possa ter – a realização de uma finalidade. A virtude está na excelência com que essa função é executada. Tomando um exemplo da natureza: qual a função do olho? Resposta: enxergar. E enxergar muito bem seria um olho virtuoso. É esse ponto que requer nossa atenção, e que retoma a reflexão sobre a ética. 

A virtude não é um conceito que se aplicaria somente às coisas presentes no mundo biológico – para usarmos termos contemporâneos –, não se trataria apenas da realização plena das potências presentes nesse aspecto do mundo.

 Mas, em harmonia com o mundo natural, nossas ações no plano moral também se direcionariam pela realização de sua própria finalidade. Ao buscar uma conduta virtuosa, o homem estaria buscando realizar nada mais nada menos do que sua própria função.

Partindo-se do pensamento aristotélico, é importante frisar que um único dia de calor não constitui o verão. As vicissitudes de uma vida contemplativa, pelo menos no sentido da ética aristotélica, não podem ser encontradas em uma contemplação meramente passiva dos fatos da vida. 

Em outras palavras, seria de pouca ou de nenhuma ajuda se ficássemos presos aos conceitos abstratos sobre o que é a felicidade caso não fizéssemos nada para colocar isso emprática. O homem é feliz se vive bem e age bem. Para Aristóteles, a felicidade está ligada a “boa vida e boa ação” . Como resultado, o pensador estagirita não hesitou em identificar felicidade com virtude.

Também é um aspecto importante nessa correlação felicidade/virtude uma melhor aproximação daquilo que o autor sugere como boa ação ou ação virtuosa. A felicidade não deve ser percebida apenas como um estado de ânimo, pois, se assim o fosse, poderia ser considerado feliz aquele que se dedica firmemente aos prazeres mais imediatos ou, ainda, também seria muito feliz aquele que outrora fora coberto de honrarias.

 Pois bem, se viver a vida nas festas (“baladas” como diríamos hoje) ou depender da fama (ser popular de alguma maneira, como ter muitos “seguidores” em redes sociais) não são para o critério aristotélico indicador de felicidade, então como alcançá-la? O sábio de Estagira formulou uma classificação dos tipos de conhecimento. 

Os teoréticos compreendem as coisas da natureza sobre as quais não temos nenhum controle ou poder de deliberação (escolha); por exemplo, a mudança das estações. Você pode até gostar mais da primavera, mas não é de sua escolha que ela pudesse durar por tempo indeterminado. 

Por outro lado, as ciências práticas (práxis) são aquelas cujos acontecimentos dependem diretamente da deliberação do agente. Nesse rol, podem ser relacionadas tanto a política como a ética, por exemplo.

Agir ou não de maneira virtuosa dependerá da deliberação de quem age. Para o filósofo estagirita, a ética trata das ações que dependem da escolha de quem age. Contudo, não basta a ação por si mesma, numa espécie de voluntarismo, até porque um animal age e reage a estímulos, ataca a presa ou foge do predador, e isso pode ser avaliado como a realização de uma das funções daquele determinado animal; pode-se quiçá falar deste ou daquele animal como um exímio predador. 


Porém, no caso do homem, está presente o “princípio racional”, e este deve ser o guia para as suas ações na busca pela felicidade: “[...] A vida virtuosa é agir em conformidade com a razão, que conhece o bem, o deseja e guia nossa vontade até ele. A vida virtuosa é aquela em que a vontade se deixa guiar pela razão.” 

Você certamente está percebendo os diferentes ingredientes presentes nessa receita de pensamento: 

1) a ética trata das ações que dependem de nossas escolhas;

 2) a finalidade dessas escolhas está em buscar a felicidade;

 3) como o homem é um ser dotado de racionalidade, o que diferencia nossas escolhas das ações dos animais, por exemplo, é o fato dessas escolhas poderem ser guiadas pela razão.tudo devidamente no lugar e que as pessoas são felizes, e que isso é uma decorrência própria da natureza humana!

Bom, isso seria uma conclusão apressada. O entendimento filosófico requer certo cuidado nos detalhes. Se agir em busca da felicidade depende de nossa escolha, então isso significa – por mais incrível que possa parecer – que podemos muito bem escolher o caminho que leva para longe da felicidade! Exatamente por sermos a causa de nossas ações – pelo menos daquelas sobre as quais podemos deliberar –, há um componente de indeterminação. 


Podemos escolher em uma direção ou em outra, podemos nos omitir ou tomar a iniciativa de determinada atitude. Em todos esses cenários, não há decorrência automática, que nos conduza a uma ação mais apropriada. Quando se trata da ética, Aristóteles reconhece que não há como aplicar uma precisão extrema, mas ele não se furta de pensar um parâmetro que possa conduzir a um melhor resultado.

Como já vimos, algumas formas de se levar a vida não trazem felicidade duradoura, ou por dependerem de coisas efêmeras ou por dependerem de terceiros. 

Para o sábio estagirita, a felicidade também está articulada com a ideia de autossuficiência, pois sendo própria ao homem, dependeria unicamente dele mesmo (não de terceiros) e seria duradoura (não algo passageiro). Assim, os ingredientes começam a se misturar, as escolhas boas ou ruins podem nos aproximar ou nos afastar da felicidade. 

Essa forma de realização, que podemos alcançar potencialmente, não está dada e, portanto, deve ser buscada, construída mediante a racionalidade de nossas ações. É na prática, na forma do meu agir em relação às outras pessoas, que posso ser avaliado como sendo justo ou injusto, bom ou mau. Uma passagem de Aristóteles que exemplifica bem o espírito de sua ética é quando afirma que: “é possível errar de muitos modos, mas só há um modo de acertar”.

Vamos imaginar um exercício para disparar uma flecha no centro do alvo determinado. A área de acerto (o centro) é muito menor do que todo o restante do alvo. O ponto de acerto pode ser um só, mas os lugares do alvo que são considerados erros são inúmeros.

Em nossa conduta em relação ao outro deve prevalecer o uso da razão. Contudo, o pensamento aristotélico refina um pouco mais a questão, oferecendo o “guia” para a ação boa e virtuosa.

 Não se trata de algo completamente preciso – Aristóteles reconhecera a dificuldade de uma maior precisão nesses casos – mas, sem dúvida, é um parâmetro bastante interessante: o meio-termo.

No entendimento do estagirita, as coisas no mundo parecem funcionar melhor quando estão em harmonia. Essa harmonia é expressa pelo equilíbrio. O excesso pode ser tão prejudicial quando a ausência.

 Alguém que come de maneira descontrolada, muito mais do que parece ser o necessário para saciar a sua fome, pode passar mal, ter fortes dores de estômago – e como ensinam os nutricionistas, nossos contemporâneos, isso pode acarretar problemas de saúde a longo prazo. Por outro lado, alimentar-se de forma insuficiente também é um risco para a saúde – a curto e a longo prazo.


 Entretanto, alimentar-se numa proporção que não é tão grande quanto o excesso e nem tão pequena quanto a ausência, na maioria dos casos, aponta para uma melhoria nas condições de saúde. O que dizer dos exercícios físicos ou da ingestão de remédios?

Alguns casos estão ligados a forças sobre as quais não podemos deliberar. Não posso, conscientemente, escolher que o remédio aplicado errado ou em dosagem alterada tenha o efeito desejado na dosagem correta que fora indicada pelo médico.


 Porém, como nos lembra o pensador de Estagira, podemos aplicar esse critério em nossas ações cotidianas, podemos levar esse parâmetro para o mundo moral.

Aristóteles dedica algumas páginas da sua Ética para analisar diferentes tipos de conduta a partir do princípio do meio-termo. Por exemplo, no Livro II da Ética a Nicômaco, ele faz uma digressão – entre outras – de como a coragem é uma virtude posicionada entre o excesso da temeridade (aquele que não se importa se vive ou morre) e a ausência da covardia.

Imaginemos o que se espera da conduta de um exército em batalha que diante de um inimigo em número muito maior, ataca impetuosamente, sem temer a própria morte. Isso até pode parecer bastante destemido, mas do ponto de vista mais racional, uma atitude impensada nessa direção poderia levar o pequeno exército a ser massacrado pelo invasor em maior número, o que provavelmente facilitaria a conquista do reino por parte do invasor. 


Outra linha de ação seria a do não enfrentamento: diante do inimigo em maior número e melhor equipado, o pequeno exército se rende enfraquecido, pois já não conta com uma parte de suas forças que foram capturadas. Mais uma vez, o reino é derrotado por seus invasores. 


Mas e se o pequeno exército faz um “recuo estratégico”, posicionando-se em uma localidade em que ele sabe que receberá reforços, aumentando seu número de equipamentos e provisões? Dessa forma a força invasora teria que se confrontar com um adversário que agora está em situação de igualdade. Isso certamente poderia mudar os resultados da guerra.

Para a ética aristotélica, o uso da razão como guia para as ações aumenta as chances das mesmas obterem um melhor resultado do ponto de vista dos fins. Se a ação possui uma finalidade, a mais virtuosa será a ação que atingir essa finalidade. 

O exército que tem como finalidade defender o reino não contribuirá para isso se expuser de maneira impensada e for massacrado pelo inimigo, tampouco os que se recusarem a combater diante de uma primeira adversidade são capazes de cumprir seu papel de defensores.

 Já os que mantiverem a disposição de combater e procurarem fazer isso de forma inteligente colocam a razão acima do medo ou da raiva imprudente e podem melhor executar o seu papel de combater os invasores. O mesmo raciocínio pode ser aplicado à maneira como guardamos ou gastamos nossos recursos financeiros, na maneira como lidamos com amigos ou com colegas de trabalho, enfim nas diferentes faces de nossas relações conosco mesmo e com as pessoas.

 Diferentes autores, ao comentar a teoria aristotélica do “justo-meio”, como também é conhecida a ética aristotélica, fazem um quadro resumido como exemplificação. Para fins didáticos, adaptamos algumas características. Segue abaixo:

Vício por Excesso       Virtude                       Vício por Ausência
Temerário                    Corajoso                               Covarde
Esbanjador                   Generoso                             Avarento
Precipitado                   Proativo                                Omisso



Muito mais do que apenas decorarmos longas listas de palavras sobre o que é virtude, ausência ou excesso, a ética de Aristóteles é um convite à prática, não apenas no sentido do agir, mas também no sentido de um aperfeiçoar-se, no sentido do exercitar. É o exercício da racionalidade na deliberação de nossas ações que ajudará na construção de disposições de caráter cada vez mais virtuosas. 

O meio-termo na moral sempre será um meio-termo relativo a nós mesmos. Então, quando e como vamos saber se atingimos o meio ou se nossas ações estão em desequilíbrio, pendendo ou para o excesso ou para a ausência? A solução aristotélica aponta para se forçar a buscar a direção contrária aos extremos, pois ali reside o erro. Quanto ao acerto “no centro do alvo”, apenas a prática acumulada poderá nos fornecer a destreza, ou melhor, a astúcia necessária.

Além da relação entre ética e felicidade e da teoria do meio-termo, merece nossa atenção as considerações que Aristóteles faz acerca da justiça. Naquilo que se refere à Justiça no seu sentido mais amplo, Aristóteles aponta diferentes sentidos que podem aparecer na sociedade, às vezes variando conforme as circunstâncias.

 Por exemplo, o que dizer do ganancioso? A ganância pode ser sempre reprovada? Em dias atuais não se considera certa dose de ambição como algo positivo? Aqueles que almejam um maior crescimento profissional ou empreender abrindo o próprio negócio costumam receber menções elogiosas na sociedade. Mais uma vez, o sábio de Estagira nos oferece uma opção.

De um ponto de vista mais geral, estar em conformidade com a lei aponta para a direção da justiça. Aproveitando o ensejo, tanto da ideia de “conformidade legal” como do lado “prático” da ética, Aristóteles faz uma reflexão não apenas sobre a justiça em geral, mas também sobre a justiça em particular.

O mestre de Estagira divide a justiça particular em:

a) justiça particular distributiva;

 b) justiça particular corretiva. Sendo que neste último caso encontramos situações particulares voluntárias e involuntárias. A justiça particular distributiva se dá na relação entre o indivíduo e o Estado, a forma como o Estado (ou o governo da cidade) distribui honrarias, benefícios ou ônus, e que pode ser avaliada como justa ou injusta. Com o parâmetro aristotélico, a mediana, ou seja, o meio-termo, nesses casos se busca a justa medida, nessa relação entre o indivíduo e o Estado. Isso pode ser condensado na fórmula: Tratar os iguais de forma igual e os diferentes de forma diferente.

Vamos imaginar alguns cenários, que mesmo contemporâneos ilustram bem o raciocínio de Aristóteles. O governo de um município cobra impostos anuais sobre a posse de um terreno de um dos seus cidadãos. 

O valor – pela regra divulgada – é proporcional ao tamanho do terreno e à localização do mesmo (em determinadas áreas da cidade o valor do tributo pode ser mais alto ou mais baixo). Agora vamos imaginar que o cidadão em questão tem um vizinho cujo terreno é exatamente do mesmo tamanho. Quando o governo do município envia a cobrança dos tributos (ônus) – com a finalidade de posteriormente distribuir benefícios (serviços públicos) –, os vizinhos percebem que recebem contas de valores muito diferentes. Para um deles está sendo cobrado (sem nenhuma justificativa) o dobro do valor do outro. 

Seguindo o critério da justiça particular distributiva, o governo – que estaria encarregado de distribuir a cobrança dos impostos – fez uma distribuição desigual em uma situação de igualdade e, portanto, injusta.

Outra situação análoga que também serve como exemplo: imaginemos agora que a cobrança de impostos vai ser aplicada a dois cidadãos que desta vez não são vizinhos. Um dele possui um terreno em uma área considerada nobre na cidade (lugar em que os serviços públicos e a localização em relação à economia da cidade são extremamente favoráveis). 

Em contrapartida, o outro cidadão possui um terreno exatamente do mesmo tamanho, mas em uma localidade menos valorizada da cidade (carente de serviços públicos básicos e com muitas dificuldade de acesso). Outra vez chega a cobrança de impostos e agora o valor é igual para situações diferentes.

 O valor cobrado já seria considerado alto para o terreno mais valorizado. Para o terreno mais afastado (uma situação diferente), o valor igual pode ser considerado completamente desproporcional! Tudo isso porque se tratou situações diferentes de forma igual, desprezando a diferença e, portanto, a “medida justa” para a situação. 

Para qualquer variação desses tipos de cenário, o critério aristotélico é sempre estabelecer o equilíbrio, a mediana. A outra modalidade de justiça particular é a corretiva. Esse conceito corresponde às situações em que a questão do justo ou do injusto envolve um ou mais cidadãos nas suas relações com outros cidadãos. 

A função do magistrado está em mediar essas relações e quando necessário, pela autoridade que representa, exigir que seja restaurado o equilíbrio. Por isso, são casos de justiça particular corretiva. Em situações que envolvem empréstimos, locações, compra e venda etc., os agentes envolvidos por interesses próprios firmam acordos voluntariamente.

 Na locação de um imóvel, por exemplo, se após o acordo firmado (contrato) o agente que alugou o imóvel deixa de pagar o combinado, a situação entrou em desequilíbrio, pois aquele que alugou continua com o imóvel de sua posse em uso pelo outro agente e não está mais recebendo por isso – como havia sido combinado anteriormente.

 Dependendo do impasse, o magistrado pode exigir que o imóvel seja devolvido ao proprietário e que o prejuízo lhe seja ressarcido (reparado), ou seja, recupera-se a situação de equilíbrio anterior.

Em outras situações, como quando um indivíduo comete um ato que prejudica outra pessoa, como em casos de crimes, roubo, agressão, homicídio, etc., Aristóteles entende que se deve avaliar o ocorrido considerando que parte dos envolvidos na relação foi envolvido de maneira involuntária. 

A vítima de um ato de agressão, roubo, conspiração, etc. não buscou essa relação livremente, cabendo à justiça, na medida do possível, reparar a situação (providenciar a devolução do que foi roubado), ou quando não for possível, contra efetuar o ocorrido. Não se pode “desagredir” ou ressuscitar a vítima de um homicídio, mas é esperado dos legisladores que criem sanções tão duras que o possível benefício que o crime poderia resultar seja diluído, de maneira a dissuadir que ocorra esse tipo de conduta.

Enfim, para a ética aristotélica, seja na busca pela felicidade, nas práticas cotidianas, ou mesmo na aplicação da justiça, sempre encontraremos à frente o uso da razão, e com ela a procura pelo meio-termo, pelo ponto de equilíbrio.





terça-feira, 14 de maio de 2019

Jean-Jacques Rousseau e o contrato social

O que a história do Ocidente conta como verdade, um órfão suíço do século 18, que se tornaria um dos pensadores de maior influência no desenrolar dos acontecimentos, soube expressá-lo em discursos críticos das desigualdades políticas já tão fortemente enraizadas na sua época. Jean-Jacques Rousseau aparece aí como uns dos primeiros a enfrentar seriamente as questões do regime absolutista e sugerir substanciais mudanças no modo de pensar o Estado.

Escolado no século das luzes e ao mesmo tempo crítico do Iluminismo, Rousseau oscila entre a confiança na razão e o ceticismo tanto para conhecer a realidade quanto para solucionar os problemas cotidianos por ela oferecidos. Em seu Discurso sobre as ciências e as artes, o filósofo não poupa esforços para demonstrar como o uso maléfico das artes e das ciências podem corromper os costumes e as virtudes. No seu Contrato social, o filósofo compõe o projeto que justifica uma real passagem do estado de natureza para o estado civil.

O estado originário do homem é a felicidade, a liberdade e a igualdade. Mas as disputas e guerras ao longo da história trouxeram o homem a um estado de coisas em que sociedade e servidão se equivalem.

Dialogando com a tradição da Filosofia Política, especialmente com aquela filiada à concepção do pacto, Rousseau ressalta que a sociedade política até então instituída nada mais era que o fruto de uma história de dominação. Para o filósofo suíço, o pacto perde sua aura de hipótese da realidade política para se converter em argumento do domínio. A sociedade surge com a desigualdade e os discursos que pregavam a alienação dos direitos em função da associação e união de todos nada disfarçavam da sua intenção de submeter.

Rousseau concebe o contrato social enquanto projeto. Com o seu planejamento, o filósofo pretende estabelecer as condições de possibilidade de um pacto legítimo, em que a liberdade natural, se não pode ser recuperada integralmente, seja ao menos substituída pela liberdade civil. Os homens precisam encontrar uma forma de associação que proteja a todos sem, contudo, constranger a liberdade de cada associado, um modo de associação em que cada um só tenha que obedecer a si mesmo.

Como encontrar a solução que atenda aos requisitos do contrato? Como respeitar plenamente a condição de igualdade dos contratantes e assegurar a liberdade antes e depois do contrato? Aí está a principal novidade proposta pelo filósofo suíço: o exercício da soberania pelo povo.

Numa sociedade assim constituída, haverá apenas uma única submissão: à vontade geral. Os indivíduos passam a integrar um sujeito coletivo dotado de uma vontade geral. Pela formação de uma vontade geral que extrapole as vontades individuais, ao povo será atribuída a soberania e somente ele será a parte ativa e passiva na elaboração e obediência às leis.

Ademais, o processo de legitimação do governo não se dá pontualmente e de uma vez por todas, ele perdura após a fundação do corpo político – todo poder governamental deve ser limitado pelo poder do povo, tendo em vista que a vontade geral não pode ser transmitida, a soberania é inalienável e indivisível. Se, por motivos operacionais, precisamos reconhecer a necessidad de representantes para o exercício do governo, esses representantes nunca serão titulares da soberania ou de seus cargos e devem ser trocados permanentemente.

Rousseau não é somente um pensador político de notável envergadura. O forte apelo revolucionário de seus textos viria a influenciar as insurreições francesas do final do século 18 e dar fôlego às aspirações democráticas do outro lado do oceano.



Machiavel (1469-1527) e a ética politica


Nascido em Florença, Nicholas Machiavel é conhecido, sobretudo, pela sua obra controvertida O príncipe. Obra admirada por Napoleão e criticada por Descartes, Diderot e outros. Trata-se de um manual dedicado aos príncipes para fortalecer e manter seus poderes. 

Florença, cidade onde nasceu Machiavel, fora libertada do governo da poderosa família dos Médicis por Carlos VIII e vivia como República ao mesmo tempo democrática e teocrática, sob a inspiração do monge dominicano Savanarole (1452-1498).

Machiavel, nascido de uma família da pequena burguesia, eleito secretário da segunda chancelaria, responsável pelas relações com o interior e com países estrangeiros, com missões junto a soberanos italianos e estrangeiros, desenvolveu habilidades políticas. Encarregado de organizar a defesa da cidade, é vencido em 1512. 

Os espanhóis devastam a cidade e os Médicis retomam o poder. Machiavel é torturado e exilado. Redige sua obra, iniciando por O Príncipe, terminado em 1513 e só publicado em 1532. Escreveu também um importante comentário sobre a história romana, intitulado Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. De volta a Florença, em 1520, redige o Discurso sobre a língua, comédias e obras históricas.

Como todo pensador de sua época, Machiavel rompe com o poder da Igreja e, em consequência, com a tradição ética cristã trazida da Idade Média. Volta-se para os historiadores da Antiguidade e se impõe a tarefa de esclarecer, de maneira rigorosa, as práticas políticas de seu tempo. Da mesma maneira que se procuram leis que dessem conta do comportamento da natureza, Machiavel busca as regras que regulam os comportamentos sociais e políticos.

Machiavel estuda o passado para compreender qual o caminho para tomar o poder e mantê-lo. Mais precisamente, quer encontrar as leis eternas da dominação dos homens pelos homens. Pretende chegar ao conhecimento do sentido que funda a ação humana, especialmente a ação política, não baseada em uma visão mítica ou filosófica dos acontecimentos históricos, e nem buscando dar conta das coisas pela ação de Deus ou da providência divina.

 Sua meta é prever os acontecimentos por meio da observação das ações humanas no presente, particularmente das ações políticas. Quanto ao comportamento ético em política, ao observar os acontecimentos de sua época, caracterizada pela ausência de um poder central e, consequentemente, por lutas constantes, Machiavel conclui que a política não pode mais ser conduzida à luz de uma norma transcendente, tal como o Bem dos filósofos e teólogos. 

É necessário que a ação política seja prática, em um universo continuamente hostil. Trata-se de um mundo constituído de indivíduos não éticos, que julgam e decidem segundo seus desejos e necessidades imediatas. 

 Alguns autores observam que, diferentemente de Aristóteles, para quem a Ética e a política, embora não se confundam, são campos relacionados, para Machiavel, embora seja louvável exercer a política com integridade ética sempre que possível, é preciso partir do princípio de que os homens são maus e de que a ação política só pode ser julgada por sua eficácia. É a eficácia da ação política que permite aos homens uma coexistência ética.

O Estado é uma criação de alguns homens superiores e nenhuma ordem é possível senão pela coerção e pela força. Enfim, fundamentar a ação política por uma concepção filosófica do dever ético é, segundo Machiavel, correr o risco de perder o que deve ser conservado (o poder) e com ele toda a possibilidade de governar.

 A verdade em política é que, para se atingir um bem como a paz e a prosperidade, todo meio é legítimo. É o que o mundo real exige e o mundo, segundo Machiavel, é imutável. 

As experiências do passado são, assim, válidas para o presente e para o futuro. Ou seja, embora os acontecimentos históricos se movimentem com rapidez diferente, a história se repete e é sempre a mesma, à semelhança do universo, que é constante e sempre o mesmo, apesar do fato de os corpos nele se movimentarem em velocidades diferentes.

Em contrapartida, as coisas humanas, ao contrário do universo, apresentam uma causalidade totalmente imprevisível. É o que Machiavel denomina de Fortuna ou roda da fortuna. O termo "Fortuna" tem uma origem mítico-filosófica, consistindo na personificação do "acaso".

 A ideia expressa por ele vem da deusa romana da sorte, representando as coisas inevitáveis que acontecem aos seres humanos, tanto na vida cotidiana quanto na Política. Significa a impossibilidade de o homem dominar totalmente a história. Porém, como veremos no texto a seguir, Machiavel considera que o homem tem possibilidade de, até certo ponto, e de uma certa maneira, dominar o inevitável.

A necessidade leva a fins que a razão desconhece. Esse fato explica os acidentes da história e sua aparência caótica. Inimiga do homem de ação, a Fortuna pode vir a ser um seu auxiliar, com a condição de que ele saiba dominá-la por meio da política. 

E nisto consiste a "virtù", ou seja, na capacidade de adaptação aos acontecimentos políticos e de consequente permanência no poder. Segundo Machiavel, a tendência dos seres humanos é manter sempre a conduta que deu certo, atitude que levaria à perda do poder. Os grandes homens políticos, que criam novas situações por sua virtù, são os "virtuosi". 

Machiavel apresenta uma teoria cíclica da sucessão dos governos, inspirando-se no historiador grego Políbio (202-120 a.C.) e na República de Platão. Segundo essa teoria, existe um clo determinado que se apresenta de maneira regular, tornando possível a observação histórica. O ciclo é o seguinte:

1) O governo original é criado por vários homens de diferentes procedências, consistindo em um governo que é a monarquia.

2) Não tarda tal governo entrar, por sua vez, em decadência, degenerando-se em tirania.

3) Surge, então, um novo governo melhor, a aristocracia.

4) Este não demora a degenerar-se em um governo oligárquico.

5) A este sucede um governo democrático que também não tarda a cair na desordem, anarquia.

6) Nessa situação, só um príncipe ou um monarca pode salvar o povo. E o ciclo recomeça.

A importância de Machiavel está, sem dúvida, nesse suscitar da reflexão sobre a Ética e sobre as dificuldades inerentes à tomada de decisões, particularmente em campos especialmente móveis, como a política ou, hoje, a tecnologia.

O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, em sua obra intitulada Signos, faz uma descrição fenomenológico-existencial que visa compreender a obra de Machiavel dentro de seu contexto existencial. 

Isso significa que Merleau-Ponty vê, na obra de Machiavel, um entendimento da política como algo eminentemente humano, buscando a verdade dos acontecimentos, descrevendo- os segundo se apresentam no mundo real, em sua instância de relação com o outro, que seria um "signo" de valor na política, parte da experiência de seu próprio tempo.

Assim, por exemplo, quando Machiavel escreve que o príncipe deve ter as qualidades que ele aparenta, estaria enunciando uma condição fundamental da política como ela era em seu tempo e continua a ser até os dias de hoje, que é "se desenrolar na aparência"; quando Machiavel diz que o príncipe tem que ter domínio de si para poder desenvolver posições contrárias no caso de ser necessário, isso significaria que, no campo da política, nãohá lugar para os valores de uma moral abstrata.

 Enfim, a  verdade na política é aquela de quem tem o poder e que não vê a própria imagem passada aos outros.

Merleau-Ponty vê, na obra O Príncipe, de Machiavel, a descrição da política como ela tem sido e é através dos tempos e, como vimos, em tal política não há lugar para a Ética. A questão que colocaríamos seria a seguinte: É mesmo possível falar de uma Ética em Machiavel?

Responderíamos que a busca de Machiavel pela compreensão dos comportamentos sociais e políticos não tem como objetivo propriamente o caráter destes enquanto se mostram em si mesmos, mas, sim, enquanto se mostram à luz de uma meta geral: a obtenção e a manutenção do poder político.

Uma visão ética é sempre uma visão concreta, o que significa uma visão completa tanto da "morada interior", ou seja, tanto dos fenômenos em si mesmos, quanto da "morada exterior", ou dos fatos em si. 

A visão de Machiavel permanece na "morada exterior", ou seja, nos fatos. E a pergunta final é: O poder deve decorrer do governar, do caráter próprio deste, do que lhe é único e singular? Ou, ao contrário, o governar deve decorrer do poder?

Duas são as consequências principais da visão da política em Machiavel, no que concerne à Ética, a nosso ver:

1) O ético ou a Ética estará necessariamente ausente em suas considerações sobre a política, uma vez que tais considerações não contemplam a ação política em seu sentido mais próprio, buscando esse sentido fora dela.

2) Não há regras propriamente de moralidade em sua concepção política, pois, sem fundamento ético, não há moralidade. As regras de comportamento por ele apresentadas são meros instrumentos de ação em busca do poder e de sua manutenção. Para não citar senão algumas:

A opressão: para permanecer no poder, é permitido, segundo Machiavel, usar de meios coercitivos, como oprimir, cultivando o medo. Pode-se, ainda, recorrer a medidas primitivas mais sumárias com relação aos que subvertem a política adotada, como as execuções.

A destruição: em alguns casos, de acordo com Machiavel, é aconselhável destruir cidades inteiras, quando o controle destas torna-se difícil, tendo em vista a existência de grupos de cidadãos, dotados de consciência política, buscando subverter a política implantada.

A mentira: diz Machiavel, no capítulo XVIII da obra O Príncipe, que um príncipe prudente não pode e nem deve guardar a palavra dada, se isso vier a prejudicá-lo ou quando as causas que determinaram a palavra dada cessarem de existir. Enfim, ser um bom simulador e dissimulador é uma das qualidades do bom governante.

E, assim, muitos outros exemplos do pensamento em política de Machiavel se encontram em sua obra principal, O Príncipe, cuja leitura aconselhamos. Ao fazê-la, você perceberá o quanto suas ideias são atuais e em plena vigência em nossa época.

No que diz respeito a convicções pessoais, estas configuram uma moralidade pessoal e não propriamente uma Ética, uma vez que se fundamentam em valores e normas culturais.

Quanto a uma Ética da responsabilidade, ela concerne a consequências e não a resultados. Em uma área como a política, particularmente assolada por circunstâncias, a postura ética
é essencial (Aristóteles, recordemos, considerava a Ética como propedêutica à política), pois toda circunstância, por sua própria natureza, não comporta regras ou princípios gerais. Ela é fundamentalmente singular. 

Atender às circunstâncias é buscar compreendê-las, o que significa "dar a justa medida", captando seus sentidos (direções) e possibilidades. É trabalho para uma equipe de profissionais, pois implica a atuação de vários campos do saber. Não há "savoir-faire", nem mesmo o político, como parece pretender Machiavel, que substitua o saber das razões que fundamentam uma situação circunstancial.